Fonte: Como ler a Bíblia livro por livro: um guia de estudo panorâmico da Bíblia I Gordon O. Fee e Douglas Stuart; São Paulo: Vida Nova, 2013.
INFORMAÇÕES BÁSICAS SOBRE MARCOS
• Conteúdo: a história de Jesus, do batismo até a ressurreição. Dois terços da narrativa relatam seu ministério na Galileia, enquanto o último terço relata a sua última semana em Jerusalém.
• Autor: anônimo; atribuído (por Papias, c. de 125 d.C.) a João Marcos, um antigo companheiro de Paulo (Cl 4.10), e depois de Pedro (1Pe 5.13).
• Data: cerca de 65 d.C. (de acordo com Papias, logo depois da morte de Paulo e de Pedro em Roma).
• Receptores: a igreja em Roma (de acordo com Papias), o que explica sua preservação junto com os Evangelhos de Mateus e de Lucas, mais extensos.
• Ênfases: o tempo do governo de Deus (o reino de Deus) chegou com Jesus; Jesus realizou o novo êxodo prometido em Isaías; o Messias real veio em fraqueza, sua identidade sendo um segredo exceto para aqueles a quem ela é revelada; o caminho do novo êxodo leva à morte de Jesus em Jerusalém; o caminho do discipulado consiste em carregar a cruz e segui-lo.
VISÃO GERAL DE MARCOS
Embora Marcos seja o mais antigo dos quatro Evangelhos (v. Entendes o que lês?, p. 162-8), por ser mais curto e conter bem menos ensino do que os outros, ele não raro foi negligenciado. Em certo nível, trata-se de uma história direta. Depois do prólogo, que nos apresenta as boas-novas sobre Jesus Cristo (1.1-15), a história se desenvolve em quatro partes. Na parte 1 (1.16-3.6), Jesus anuncia publicamente a chegada do reino. Agindo de forma ininterrupta, ele chama discípulos, expulsa demônios, cura os doentes e anuncia que tudo isso está ligado à chegada do reino de Deus; no processo, ele atrai a admiração das multidões e a oposição das autoridades religiosas e políticas, que desde o início planejam a sua morte.
A parte 2 (3. 7-8.21) desenvolve o papel de três grupos significativos. Os milagres e o ensino de Jesus conquistam a admiração constante das multidões; os discípulos recebem instrução particular (4.13,34) e se unem à proclamação do reino (6.7-13), mas nem sempre entendem direito o ensino de Jesus (8.14-21; cf. 6.52); a oposição continua crescendo (7.1-23; 8.11-13).
Na parte 3 (8.22-10.45), Jesus concentra sua atenção principalmente nos discípulos. Três vezes ele explica a natureza do seu reino – e, portanto, do discipulado (8.34-38) – como trilhando o caminho da cruz (como o Servo Sofredor de Isaías; Mc 10.45), e três vezes os discípulos não entendem absolutamente nada.
A parte 4 (10.46-15.47) conduz a história ao seu ápice. O rei entra em Jerusalém e as multidões se agitam, entusiasmadas, mas a oposição acaba vencendo. Jesus é julgado, condenado e entregue aos romanos para a execução numa cruz – como "o rei dos judeus" (15.2).
Um breve epílogo (16.1-8) lembra aos leitores de Marcos que “Jesus ressuscitou!"
ORIENTAÇÕES PARA A LEITURA DE MARCOS
Era uma época de matança em Roma. A igreja passava pelo holocausto realizado pelas mãos de Nero, em que muitos cristãos haviam sido queimados vivos nas festas do jardim de Nero e dois dos personagens mais importantes da igreja (Pedro e Paulo) haviam sido executados. Pouco depois, apareceu entre eles um pequeno livro (o Evangelho de Marcos) para lembrá-los da natureza da própria missão de Messias de Jesus (como o Servo Sofredor de Deus) e para encorajar a vida de discipulado sob a cruz.
Marcos já foi descrito como alguém que não consegue contar mal uma história. Em parte, isso se deve ao seu estilo vívido, que também concede ao Evangelho uma sensação de ação rápida. Quase todas as frases começam com "e" (cf. ARC 1969); em 41 ocasiões numa versão, a frase começa com "e imediatamente" (nem sempre se referindo ao tempo, mas à urgência do relato), e 25 vezes, com "e novamente". Mas o autor também dá valor a pequenos detalhes, incluindo as palavras aramaicas de Jesus em seis ocasiões. Tudo isso reflete tanto a forma escrita de um relato oral como a memória de uma testemunha ocular.
O lugar proeminente de Pedro no Evangelho, e o fato de já no início tanta coisa acontecer na casa de Pedro e em seus arredores em Cafarnaum, sugerem que a tradição está certa – que o Evangelho reflete em parte o próprio relato de Pedro da história. Mas o papel de Pedro no Evangelho é tudo menos o de um herói. Ele, que exortou outros – "revesti-vos de humildade" (1Pe 5.5) –, não esquece da sua própria fraqueza ao seguir Jesus; é uma boa ideia prestar atenção nesses aspectos durante a sua leitura. Mas no final, depois de veementemente ter negado conhecer seu Senhor (Me 14.66-72), ele também lembra que o anjo disse à mulher na sepultura: "Mas ide, dizei a seus discípulos, e a Pedro" etc. (16.7, grifo do autor).
Mas por breve e intenso que seja o Evangelho de Marcos, ele não é de modo algum simples. Aliás, Marcos conta a história com profunda percepção teológica. Para se ter uma boa compreensão na sua leitura, é absolutamente crucial observar a forma como Jesus se apresenta no papel de Messias. Três coisas emergem no início da narrativa e figuram nela até o fim: (1) Jesus é o Messias régio, (2) Jesus é o Servo Sofredor, e (3) Jesus mantém sua identidade em segredo.
O relato de Marcos da história, desse modo, enfatiza o "segredo messiânico", o "mistério do reino de Deus", isto é, que o Rei esperado estava destinado a sofrer no lugar do povo. Os demônios, que o reconhecem, são silenciados (1.25,34; 3.11,12); pede-se às multidões a quem o Rei se dirige com compaixão que não contem a ninguém sobre os seus milagres (1.44; 5.43; 7.36; 8.26); quando finalmente os discípulos o confessam como Messias, ele lhes pede que não o revelem a ninguém (8.30). O que ninguém espera é que o Rei de Deus seja pregado numa cruz! Mas Jesus sabe o que deve acontecer – e silencia todo fervor messiânico, para que o plano que leva à cruz não seja frustrado. Mas quando "o mistério" é sugerido aos discípulos, eles próprios não conseguem entendê-lo (8.27-33); eles são como o homem cego que foi tocado duas vezes (8.22-26; no caso deles, pela ressurreição de Jesus).
Mas ao lembrar seus leitores da natureza da missão messiânica de Jesus, Marcos nos lembra que esse é, também, o caminho do discipulado. De fato, a primeira instrução sobre o discipulado (8.34), o chamado para carregar a cruz, só aparece depois da primeira revelação aos discípulos sobre a morte iminente do próprio Jesus (v. 31).
Marcos também usa o tema do Messias e Rei sofredor para mostrar a ligação entre Jesus e a história de Israel, especialmente o novo êxodo de Isaías (que, àquela altura, já era esperado havia muito tempo). Os momentos cruciais no primeiro Êxodo são a libertação, a jornada pelo deserto e a chegada ao lugar onde o Senhor habita. Isaías (caps. 35; 40--45) anuncia o retorno do Exílio na Babilônia como um novo êxodo. Observe como Marcos nos apresenta esse tema já bem no início: "Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus [...] Conforme está escrito no profeta Isaías." Jesus então desempenha o papel de Israel (através da água e da provação no deserto). O tema continua ao longo do livro. Marcos cita Isaías em pontos-chave (a dureza de coração da oposição, "os de fora" [Mc 4.10-12; 7.6; 9.48]; a inclusão dos gentios [11.17]). Ele ecoa Isaías de todas as maneiras: o ministério de Jesus é exprimido na linguagem de Isaías 53 (Mc 10.45); a parábola dos lavradores (12.1-12) reformula a "canção da vinha"(NVI) de Isaías (Is 5.1-7); o tema de olhos que veem mas não percebem e ouvidos que ouvem mas não entendem (Is 6.9,10). O há muito esperado libertador agora veio, mas ao contrário das expectativas comuns, ele veio para sofrer pelo povo, a fim de conduzi-lo do exílio até a terra prometida final (Mc 13).
Uma parte significativa do novo êxodo incluía o ajuntamento das nações gentílicas. Como o Evangelho de Marcos se dirige a pessoas que já integram essa missão, o modo de inseri-los na história de Jesus é relatando uma série de narrativas não galileias (gentílicas) em 6.53-9.29. [...] Além do mais, a missão aos gentios prorroga a descida da cortina final na história (13.10) e, reempossando-se no templo como o "rei" de Israel (11.17), Jesus cita Isaías 56.7 ("A minha casa será chamada casa de oração para todas as nações" [=gentios]).
Ao observar esses aspectos durante a sua leitura, talvez você também acabe reconhecendo o Evangelho de Marcos como um dos tesouros mais ricos da Bíblia.