Segundo a Pena inspirada, à medida que nos aproximássemos do fim, a doutrina do santuário seria seriamente questionada tanto pelos de dentro como pelos de fora da igreja:
“Futuramente surgirão enganos de toda espécie e carecemos de terreno sólido para nossos pés. Necessitamos de sólidos pilares para o edifício. Nem a mínima coisa deverá ser omitida de tudo quanto o Senhor instituiu. O inimigo introduzirá doutrinas falsas, tais como a de que não existe um santuário. Este é um dos pontos em que alguns se apartarão da fé.” – Evangelismo, pág. 224.
Um dos primeiros a contestar a doutrina do santuário, entre os adventistas, foi Dudley M. Canright (1840-1919). Brilhante pregador, com vinte quatro anos foi ordenado a pastor. Depois de um ministério marcado por altos e baixos, rejeitou a sua antiga fé e tornou-se um antagonista do ministério profético de Ellen White e das principais doutrinas do adventismo, entre elas a do santuário. Os argumentos do seu livro o Seventh-day Adventism Renouced (Adventismo Renunciado) tornaram-se padrão para a rejeição dos ensinos adventistas.[1]
Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, um evangelista inglês, Albion Fox Ballenger, depois de tentar e não ser bem sucedido em explicar o ritual do santuário durante uma conferência, ao término do culto afirmou: “Se Deus quiser, nunca mais pregarei até estar sabendo sobre o que estou pregando.” Mais tarde, ele abandonou o seu trabalho de evangelista e rejeitou o adventismo.
No fim da década 1970 e início dos anos 1980 repercutiu no meio adventista o caso do Dr. Desmond Ford. Ele fora professor de teologia no Colégio de Avondale, Austrália, e durante um seminário que reuniu significativo grupo de intelectuais adventistas, desafiou a Igreja dizendo que suas doutrinas, entre elas a do santuário, careciam de fundamento bíblico.[2]
No Brasil, os pensamentos do Dr. Ford encontraram acolhidos no coração de um leigo adventista. O Dr. Umbaldo Torres de Araújo era engenheiro e após renegar sua antiga fé, escreveu uma série de três livros, entre eles O Adventismo.[3] Nesta obra ele ataca as principais doutrinas adventistas, entre elas o santuário.
De D. M. Canright à U. T. de Araújo os argumentos usados para se rejeitar a doutrina do santuário são os mesmos. Neste artigo estaremos examinando-os e demonstraremos a sua validade ou não.
Existe um santuário no céu, ou o céu é este santuário? Hb 9.24
O primeiro argumento usado para a rejeição da doutrina do santuário, conforme ensinada pelos adventistas, é que no céu não há um santuário, mas que o próprio céu seria este santuário. Para isso, cita-se Hb 9.24:
“Por que Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo Céu, para comparecer agora por nós diante de Deus.”
A Nova versão internacional verteu esta passagem nestes termos: “Pois Cristo não entrou em santuário feito por homens, uma simples representação do verdadeiro; ele entrou nos céus, para agora se apresentar diante de Deus em nosso favor.”
Baseado nesta passagem Ubaldo T. de Araújo afirma que “Cristo, para chegar à presença de Deus entrou no Santíssimo celestial, o próprio Céu.”[4] Assim ele nega a existência do Santuário Celestial e afirma que “o primeiro compartimento era símbolo da Terra, e o segundo, do santuário Celestial”[5] [o próprio céu]. A questão que fica é: existe um santuário no Céu ou o Céu é este santuário? As implicações deste dilema são óbvias. Senão existe tal coisa como um santuário celestial então a doutrina adventista não tem respaldo bíblico. Se por outro lado, a Bíblia afirma que existe um Santuário celestial então como devemos entender esta passagem?
Na qualidade de que entrou Cristo no Céu para comparecer diante de Deus por nós? Na qualidade de Sumo sacerdote. “Portanto, visto que temos um grande sumo sacerdote que adentrou os céus, Jesus, o Filho de Deus, apeguemo-nos com toda a firmeza à fé que professamos”, Hb 4.14 (NVI).
Onde, e como que, devia Ele exercer Sua função sacerdotal? Onde? No céu. Como que? “Como ministro do Santuário do verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu e não o homem”, Hb 8.2 (ARA).
Segundo este último texto há um santuário no céu e, portanto, não se trata nem do santuário terrestre e nem o próprio céu é o santuário.
Quando Moisés edificou o tabernáculo no deserto ele estava seguindo um modelo existente no céu (Hb 8.5 comparar com Ex 25.40; 26.30; 27.8).
A citação do altar de incenso e da arca da aliança no santuário no céu, no Apocalipse (8.5; 9.13; 11.19), dão-nos a certeza da reciprocidade entre o santuário terrestre e o celeste. Como o primeiro está relacionado com a obra intercessória e o segundo com o juízo não é difícil relacioná-lo com as duas fases do ministério de Cristo como sacerdote.
Além disso, o Apocalipse faz referências diretas a existência do Santuário no céu:
“Então saiu do santuário, que se encontra no céu...”, 14.17.
“E abriu-se no céu o santuário do tabernáculo do testemunho”, 15.5.
“Abriu-se então o santuário de Deus que se acha no céu, e foi vista a arca da aliança no seu santuário”, 11.19.
Em Salmos muitas referências são feitas ao santuário de Deus que está no Céu: “O Senhor está no Seu santo templo; nos céus tem o Senhor seu trono” (cap.11.4). O templo referido nesta passagem é o celestial e não ao de Salomão.
A correta leitura então de Hb 9.24 seria:
“Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu ‘onde o verdadeiro santuário, que o Senhor erigiu, e na o homem’, se encontra, ‘para ali comparecer por nós perante Deus’.”
Ta hágia
Com relação ao capítulo 9 de Hebreus outra objeção é levantada: a correta tradução da palavra grega “ta hágia”. A palavra aparece dez vezes em Hebreus, sendo traduzida por santuário, lugar santo ou santo dos santos. A questão é a forma como a palavra é vertida por algumas traduções em Hebreus 9.8, 12 e 25 e no capítulo 10.19[6]. Enquanto algumas versões traduzem ta hágia como “Santo dos santos”, como a Bíblia na linguagem de hoje, a Nova versão internacional e as versões de Almeida, outras vertem para “santuário”, como a Bíblia de Jerusalém, a Tradução ecumênica, a Tradução Brasileira e a Nova Bíblia na linguagem de hoje. As implicações destas diferenças são claras. Se o sentido de ta hágia é “santos dos santos”, então Cristo, quando ascendeu aos céus, não entrou no lugar santo do santuário e não haveria sentido de Seu ministério intercessório ser feito em duas fases. A doutrina do santuário, conforme ensinada pelo adventismo, não teria fundamento bíblico.
Para responder esta questão devemos levar em consideração dois aspectos importantes para não contrariarmos o ensino bíblico. A primeira questão é o contexto geral, encontrado no contexto do capítulo 9 de Hebreus. Comentaristas e tradutores que preferem a tradução “santo dos santos” para a palavra ta hágia partem do pressuposto de que este capítulo de Hebreus trata do dia da expiação. A ênfase do autor de Hebreus é sobre o serviço do santuário como um todo e não apenas do realizado no santíssimo.
Alguns cristãos estavam sendo seduzidos a voltarem para o judaísmo (Hb 4.14 [Rhoden], e 10.23 e 25) e foi para mostrar a superioridade da religião cristã que a epístola aos Hebreus foi escrita. Nos primeiros capítulos 8 a 10, o autor procura demonstrar a superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o araônico. “O mais importante do que estamos tratando é que temos um sumo sacerdote como esse, o que se assentou à direita do trono da Majestade nos céus e serve no santuário, no verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, e não o homem”, Hb 8.1 e 2.
A segunda questão que devemos lembrar é que o autor de Hebreus, quando está se referindo ao lugar santíssimo, usa a expressão hágia hágion [literalmente, Santo dos santos], como está em Hb 9.3. Quando a expressão ta hágia é usada ele está se referindo ao santuário, em geral.
Esta tendência reflete a tradução feita pela Septuaginta. Quando o texto refere-se ao lugar santo é usada a expressão hágion, enquanto para se referir para o santíssimo usa a expressão hágion ton hárgion (Ex 26.33). Como provavelmente o escritor de Hebreus usou mais o texto grego da Septuaginta do que o original hebraico é provável que ele tenha usado as palavras com o mesmo sentido.
Por último, temos que levar em conta que no dia da expiação o sumo sacerdote entrava no santuário com um todo, ou seja, ele ministrava nos dois compartimentos e não somente no segundo. Se compararmos Hb 9.25 com Lv 16.3, perceberemos que o santuário inteiro estava envolvido neste serviço e que, portanto a melhor tradução para ta hágia é “santuário”.[7]
Hebreus 9.12
Comentaristas tentam deduzir que a primeira parte de Hb 9.12, que diz: “não por meio de sangue de bodes e de bezerros, mas por seu próprio sangue entrou no santos dos santos [....]” (ARA) se refere à entrada de Cristo no santíssimo como no grande dia da expiação. Por que não concordamos que esta passagem tem relação com o dia da expiação?
Segundo o pesquisador Gerhard F. Hasel essa passagem não tem relação com o dia da expiação. Ele chama a atenção para o fato de que a passagem de Hb 9.12 cita “bodes e bezerros” (no grego “tragon kai moschon”).
“Há uma situação no VT em que o ‘sangue de carneiros e bezerros’, v. 12 era usado. Trata-se da inauguração ou começo do ministério do sumo sacerdócio de Arão no santuário israelita, que é também o início dos serviços do santuário.Em Lv 9.8, 15, 22 o sumo sacerdote sacrificava um bezerro da oferta pelo pecado por si mesmo e um pode da oferta pelo pecado do povo e se empenhava em manipulação de sangue. Seguindo isto junto com outras ofertas, o sumo sacerdote entrava no santuário. Assim alguém é levado a pensar antitipicamente que Cristo como o Sumo Sacerdote celestial é referido como inaugurando o ministério no santuário celestial.
“A conclusão é segura de que Hb 9.12 apanha o tema da dedicação do VT e o aplique ao ministério de Cristo no santuário celestial. EM outras palavras, em vez da ênfase ao Dia da expiação que vem ao final (sic) do ano litúrgico, Hb 9.12 parece referir-se ao tema da dedicação/inauguração que ocorre no início do ministério no santuário celestial. Isto se harmoniza com o tema do novo concerto de Hb 8, 9. O novo concerto tem um sanuário celestial que é dedicado e seu ministério é assim inaugurado ‘pelo Seu próprio sangue’ (9.12). isto é feito ‘uma vez por todos’ por Cristo. Em contraste com o santuário terrestre, é não receptível. O sangue de Cristo tem uma vasta superioridade sobre o ‘sangue de bodes e bezerro’.”[8]
Veja Hb 9.11 e 12, como vertida pela Tradução Brasileira:
“Mas Cristo, tendo sido como Sumo sacerdote dos bens já realizados, por meio do maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos de homens, isto é, não desta criação, nem pelo sangue de bodes e bezerros, mas pelo seu próprio sangue entrou uma vez para sempre no Santo lugar, havendo obtido uma redenção eterna.”
Em que compartimento entrou Jesus quando ascendeu ao céu? Hb 6.19 e 20.
Outra passagem citada para tentar negar a doutrina do santuário, conforme ensinamos, é Hb 6.19 e 20.
“Temos esta esperança como âncora da lama, firme e segura, a qual adentra o santuário interior, por trás do véu, onde Jesus que nos precedeu, entrou em nosso lugar, tornando-se sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque.”
Segundo esta interpretação Cristo entrou no segundo compartimento do santuário celestial, quando subiu ao céu, passando a ministrar como Sumo sacerdote.
O santuário terrestre tinha dois véus (Hb 9.3): o primeiro, que separava o pátio do lugar santo, e o segundo, que separava o santo do santíssimo. A palavra grega que corresponde a véu, katapetasma, ocorre seis vezes no Novo Testamento, três para referir-se ao véu do templo que rasgou-se de alto a baixo, por ocasião da morte de Cristo (Mt 27.51; Mc 15.38 e Lc 23.45) e três vezes em Hebreus (6.19; 9.3 e 10.20). Na LXX, katapetasma aprece para referir-se a cortina que separa o santo do santíssimo (Ex 26.31, 33), a cortina da porta do tabernáculo (Ex 26.37) e a cortina da porta do pátio (Ex 38.18). Por isso, Hb 9.3 usa a expressão “segundo véu”.
A questão é; a que cortina o autor de Hebreus refere-se no capítulo 6.19? O que o escritor em vista ao dizer que Cristo entrou “por trás do véu”?
Com respeito a esta passagem, o Comentário Bíblico Adventista apresenta três interpretações possíveis para elucidar o seu sentido.
A primeira interpretação diz que o véu refere-se a cortina divisória entre os dois compartimentos. Contudo, o autor estaria referindo-se a entrada de Cristo no lugar santíssimo para dedicá-lo, bem como o resto do santuário, quando Ele assumiu a função de Sumo Sacerdote. Essa dedicação foi mencionada em Dn 9.24 (“para ungir o santo dos santos”) e foi simbolizada na unção do santuário terreno depois de sua construção (Ex 40; 30.26-29).
Uma segunda interpretação possível diz que o véu não é o ponto mais importante dessa passagem, pois o escritor de Hebreus chamava a atenção não pra o véu senão para o que estava dentro [detrás] do véu: o lugar onde Cristo ministra. Assim a palavra “véu” (katapétasma) não teria o sentido técnico, mas sim seria uma figura de linguagem para descrever o que divide visível do invisível, o terrestre do celestial. Estar “dentro do vê” significa simplesmente estar na presença de Deus (ver o versículo 10 e comp. com 9.24).
E por último, devemos lembrar que em outro lugar Paulo refere-se ao véu que separa o lugar santo do lugar santíssimo, como “o segundo véu” (9.3). Portanto, quando ele fala do “véu” (cap. 6.19) deve referir-se simplesmente ao que está na entrada do tabernáculo. Como o santuário terrestre prefigurava a obra de Cristo no celestial, quando o nosso Sumo Sacerdote ascendeu ao céu entrou no lugar santo – o primeiro compartimento – para iniciar a primeira fase do seu ministério celestial.[9]
Qualquer uma das três explicações está em conformidade com a nossa doutrina e são perfeitamente cabíveis, dentro de uma exegese séria e responsável.
A doutrina do santuário está bem firmada nas Escrituras. Não é produto de divagações e nem é desculpa elaborada para um erro de interpretação. É revelação do amor de Deus de forma didática.
[2] Idem, pág. 134.
[3] As outras duas obras foram A Igreja de vidro, onde tentava desacreditar o ministério profético de Ellen G. White, e Pecador eu sou, transgressor, não!, dedicado a atacar a doutrina do sábado. Estas obras foram publicadas pelo autor e encontram-se esgotadas há muitos anos.
[4] ARAÚJO, Ubaldo Torres de. O adventismo, pág. 27.
[5] Idem, págs. 23 e 24.
[6] Ubaldo T. de Araújo baseia-se em Hb 10.19 e 20 para afirmar que o “Santíssimo é o próprio Céu.” (pág. 29).
[7] www.advir.com.br/sermoes, acesso em 20 de abril de 2006.
[8] HASEL, Gerhard F. Redenção divina hoje – estudos sobre a doutrina do Santuário. Brasília, DF: Seminário Adventista Latino –Americano de Teologia, 1981.
[9] NICHOL, Francis D. Comentario biblico adventista Del septimo dia, tomo 7, pág. 452.