(mensagem para ser apresentada na manhã do sábado 11 de novembro de 2017)
O ano de 2017 é marcado por homenagens e comemorações pelo 500º aniversário da Reforma Protestante. Cinco séculos se passaram desde aquela quarta-feira importante e histórica de 31 de outubro de 1517, quando um monge agostiniano corajoso e destemido, Martinho Lutero, o maior herói da Reforma, fixou com pregos na porta da igreja de Wittenberg um simples papel que continha as suas famosas 95 teses contra a doutrina das indulgências.
Um 31 de outubro que chacoalhou as bases da cristandade, que transformou a religião, a educação, as línguas, a economia, as ciências, que quebrou os paradigmas mais arraigados da sociedade e também nos ensinou a cantar com uma nova linguagem, a fazer música através de um novo idioma. Uma quarta-feira que mudou o mundo para sempre.
O Espírito de Profecia afirma em relação ao reformador:
“Preeminente entre os que foram chamados para dirigir a igreja das trevas do papado à luz de uma fé mais pura, acha-se Martinho Lutero. Zeloso, ardente e dedicado, não conhecendo outro temor senão o de Deus, e não reconhecendo outro fundamento para a fé religiosa além das Escrituras Sagradas, Lutero foi o homem para o seu tempo; por meio dele Deus efetuou uma grande obra para a reforma da igreja e esclarecimento do mundo.”1
“Os ensinos de Lutero atraíram a atenção dos espíritos pensantes de toda a Alemanha. De seus sermões e escritos procediam raios de luz que despertavam e iluminavam a milhares. Uma fé viva estava tomando o lugar do morto formalismo em que a igreja se mantivera durante tanto tempo. O povo estava diariamente perdendo a confiança nas superstições do romanismo. As barreiras do preconceito iam cedendo. A Palavra de Deus, pela qual Lutero provava toda a doutrina e qualquer reclamo, era semelhante a uma espada de dois gumes, abrindo caminho ao coração do povo. Por toda parte se despertava o desejo de progresso espiritual. Fazia séculos que não se via, tão generalizada, a fome e sede de justiça. Os olhos do povo, havia tanto voltados para ritos humanos e mediadores terrestres, volviam-se agora em arrependimento e fé para Cristo, e Este crucificado.”2
LUTERO: MÚSICO, CANTOR E COMPOSITOR
A conexão entre o reformador e a música sempre foi profundamente íntima. Nos momentos de grandes ameaças e de máximo perigo para a Reforma, Lutero reavivou a débil fé da Igreja cantando “Castelo Forte é nosso Deus”. Quando os versos inspirados eram ouvidos, os tristes pressentimentos se desvaneciam e muitos corações aflitos sentiam alívio.
Lutero era alemão, homem do povo. Admirável era a sua grande capacidade de tocar com maestria o alaúde e cantar com voz de tenor. Se houvesse um tipo específico de alemão do norte, amante da música, enérgico, de temperamento exaltado, embora intensamente sério, Lutero iria representá-lo completamente. Na infância, antes de assumir os votos religiosos e tomar as ordens sagradas, Lutero recebeu a preparação normal e completa de uma criança coreuta alemã e, como todas as outras crianças, cantava pedindo esmolas nas procissões que frequentemente se realizavam na cidade, nos casamentos e nos funerais de dignitários locais. Sua total dedicação à música teve influência em tudo quanto fez, não somente na liturgia alemã, mas também no conceito da educação na Alemanha. E sua vida foi quase tão importante para o futuro da música como foi para o futuro da religião.
A MÚSICA E SEU SIGNIFICADO PARA LUTERO
Para o reformador, a música é um dom de Deus e tem um significado transcendental no ministério.
O próprio Lutero declarou: “A nobre arte da música é, como diz a Palavra de Deus, o mais precioso dos tesouros terrestres. Ela domina todos os pensamentos e sentidos, o coração e o espírito. Queremos confortar o aflito, acalmar o imprudente e torná-lo dócil? O que seria melhor para isso do que a nossa elevada, admirável, bonita e nobre arte? O próprio Espírito Santo a tem na mais alta estima, porque através dela afastou o espírito maligno de Saul, quando Davi fez música com a sua harpa. Da mesma forma, quando Eliseu queria profetizar, pediu que a harpa fosse tocada. Portanto, não foi sem razão que os pais da Igreja e os profetas sempre quiseram unir intimamente a igreja e a música, e é por isso que temos tantos hinos e tantos salmos. É por esse dom precioso, oferecido exclusivamente ao ser humano, que cada homem se lembra de seu dever de sempre louvar e glorificar a Deus”.
Em outras ocasiões, ele mesmo deu as seguintes recomendações aos seus seguidores: “Eu gostaria de ter mais hinos para que o povo pudesse cantar durante o culto e para acompanhar as nossas celebrações religiosas. Decidimos seguir o exemplo dos profetas e dos pais da igreja ao escrever hinos em alemão para o povo alemão”.
Em 1538, ele escreveu: “Quando a música natural é aperfeiçoada e refinada pela arte, em seguida começa-se a perceber a sabedoria perfeita de Deus em sua maravilhosa obra musical. Quando uma voz assume uma melodia e em torno dela çantam três, quatro, cinco ou mais vozes, interagindo, dialogando, embelezando e ornamentando de maneira bela a melodia original, então se escuta uma antecipação da música celestial”.
O HINÁRIO PROTESTANTE
Uma das primeiras publicações do protestantismo foi um livro de canto. Isso é uma forte evidência da importância dada à música nas igrejas da Reforma.
O crescimento do hinário protestante ocorreu rapidamente e não se deteve com Lutero. As melhores melodias sempre desempenharam um papel de destaque no repertório da música protestante. Ao mesmo tempo, novas canções foram elaboradas e muitos outras adaptadas para o canto dos fiéis.
FLORESCIMENTO MUSICAL PROTESTANTE
Lutero e a Reforma Protestante propiciaram um desenvolvimento musical tão significativo na Alemanha que este país tornou-se o centro musical da Europa por muitos séculos mesmo após a Reforma. Grandes compositores protestantes alemães ficaram registrados na história da música devido ao seu vasto legado musical.
“Durante o século XVII, o centro musical da Europa mudou da Itália para a Alemanha. Esta mudança deve ser atribuído ao protestantismo. O vigoroso crescimento da música que culminou na obra criadora de Johann Sebastian Bach, não pode ser explicado pela história política dos alemães ou por sua filosofia. Foi sim o resultado da reforma luterana e de vários movimentos religiosos que seguiram seus passos. E há razões poderosas para que esse grande florescimento musical tenha sido o produto do protestantismo”.3
Pareceria que o gênio da música tivesse suas asas cortadas durante a Idade Média. A arte dos sons provou ser uma arte eminentemente protestante. A piedade protestante encontrou sua melhor expressão na música. A fé vibrante de Lutero, sua jubilosa experiência com Deus, seu ensinamento da salvação pela graça, o fizeram irromper em louvores ante o seu Deus, e seus sentimentos puderam encontrar expressão na música.
Em seguida a esse preâmbulo sobre Lutero, a Reforma Protestante e sua relação com a música, nos parágrafos seguintes vamos estudar mais detalhadamente três dos mais transcendentais novos princípios musicais que, sob inspiração divina, a nova igreja aplicaria: 1) o princípio do canto em comum, 2) o princípio do canto no idioma do povo e 3) o princípio do desenvolvimento da linguagem musical e dos instrumentos.
1) O princípio do canto em comum
Antes de 1517, a Igreja Católica controlava rigidamente a música religiosa na Europa. A participação das pessoas comuns na adoração era praticamente nula. Nas igrejas, a maioria das pessoas se limitava a ouvir o canto gregoriano, gênero da música oficial do catolicismo, interpretado a uma só voz unicamente pelos monges e exclusivamente em latim. A participação dos instrumentos na igreja era totalmente proibida.
Lutero quebrou essas tradições rígidas e transformou a participação na vida musical cristã que, para ele, não devia ser reservada apenas aos sacerdotes e coros interpretando canções incompreensíveis em latim, mas deveria estar próxima de pessoas comuns como “uma dádiva de Deus “. E, como tal, deveria ser acessível a todo o mundo. “Ao embelezar e adornar suas melodias de forma magnífica, os cantores podem levar os outros à música celestial”, disse ele. O canto em latim foi substituído por hinos no idioma alemão usado no cotidiano e esse modelo se tornou uma parte fundamental da identidade da Igreja Protestante.
A partir da Reforma Protestante a música é também uma herança do povo que adora. Nas igrejas foram organizados coros comunitários, coros juvenis, coros infantis, onde absolutamente todos os fiéis – inclusive as mulheres – podiam cantar organizadamente (vale a pena lembrar que a mulher estivera sempre excluída de todos os atos religiosos no mundo católico). Esses coros exerceram uma atividade muito intensa na vida religiosa das comunidades protestantes e foram um poderoso meio de difusão da mensagem. No entanto, os coros não foram criados com o objetivo de oferecer concertos de música sacra, mas principalmente para acompanhar e orientar a congregação no canto em todos os atos litúrgicos.
Outro dado musical profundamente significativo é que nos anos imediatamente posteriores à Reforma Protestante, os compositores da Reforma – muitos deles realmente célebres autores que ficaram registrados na história por sua enorme contribuição para o desenvolvimento da linguagem musical – transformaram a maneira de escrever música para coro por um motivo muito especial. Em vez da melodia principal na ser cantada na voz do tenor, como se fazia com frequência até então, ela foi colocada na voz da soprano. O motivo foi que para a congregação era realmente mais fácil ouvir a melodia principal no registro agudo e mais evidente do coro do que fazê-lo na linha do tenor. Certamente esse fato, de não pouca importância, juntamente com outras profundas transformações na linguagem da música, culminaram com a obra portentosa de Johann Sebastian Bach e Georg Friedrich Handel, os maiores e mais célebres compositores protestantes de todos os tempos.
2) O princípio do canto no idioma do povo
A Reforma Protestante entendeu que para que o povo pudesse cantar, deveria fazê-lo em um idioma ao alcance da sua compreensão. O latim medieval foi substituído pelas línguas vernáculas, o meio de comunicação das pessoas comuns.
Lutero não apenas promovia a música por razões de fé, mas compreendia o seu poder inquestionável para difundir a mensagem. Ele acrescentou textos de fácil compreensão a canções tradicionais reconhecíveis musicalmente. Essa iniciativa foi particularmente útil em uma época de ignorância, visto que inclusive as pessoas analfabetas – cerca de 85% da população alemã em 1500 – podiam aprender essas músicas e transmiti-las muito rapidamente.
Como músico e compositor, Lutero pessoalmente se encarregou de impulsionar essas mudanças, buscando que até mesmo as crianças aprendessem música em seu próprio idioma nas escolas e trabalhando com outros reformadores para produzir hinários protestantes que as comunidades pudessem usar amplamente.
Assim, os hinos de Lutero não somente foram reconfortantes para seus seguidores, mas também atraíram novos conversos. A nova música se espalhava de cidade em cidade antes que as autoridades católicas pudessem silenciá-la. E, como em outros aspectos da Reforma, a imprensa foi fundamental. Os hinos de Lutero multiplicavam-se como panfletos e cidades inteiras eram ensinadas por cantores itinerantes. Às vezes os hinos trabalhavam mais rápido do que ele. Em Magdeburg o cântico coletivo de suas canções conseguiu converter a cidade antes da chegada do teólogo. Rapidamente os hinos luteranos saíram da Alemanha, passando a ser cantados em países católicos e inclusive traduzidos para outros idiomas, como o inglês.
3) O princípio do desenvolvimento da linguagem musical e dos instrumentos
Os princípios musicais da Reforma aplicados em toda a Alemanha, e depois na Europa e no mundo, conduziram a um grande desenvolvimento musical. “Um professor deve saber cantar,” declarava sempre Lutero com seu característico vigor dogmático. “Se não sabes cantar não podes ser um dos nossos. Se os jovens não estudam e não praticam a música, eu nunca os admito no ministério”. Por essa razão, os professores eram geralmente bem treinados na arte do ensino do canto e dos elementos musicais. A base musical que as crianças pequenas recebiam tornava possível que em muitas cidades pequenas, mas também nos maiores, se organizassem sociedades musicais, coros e orquestras.
Chegaram até nossos dias vários manuais musicais da Reforma Protestante e de épocas imediatamente posteriores, dedicados ao ensino e à didática da música, e que incluem não somente o canto, mas também teoria e composição. Muitos deles revelam um notável grau de qualidade musical de seus usuários. Em 1620, historiadores descreveram a vida e as atividades musicais na Alemanha com estas palavras: “Onde há um órgão, a música vocal é acompanhado por cinco ou seis instrumentos de cordas, alguns dos quais não eram sequer conhecidos nessas cidades antes da Reforma”.
Portanto, podemos dizer sem sombra de dúvida que a Reforma Protestante foi o fator histórico mais determinante no desenvolvimento da linguagem musical tal como a conhecemos hoje. A criação das escolas paroquiais de música, onde as crianças e jovens podiam estudar desde tenra idade, produziu um avanço valioso para a história da música. Incentivou-se a criação de novas composições e a exploração de novos recursos sonoros.
O processo de exploração de novos recursos sonoros também propiciou um grande desenvolvimento na engenharia de construção de instrumentos musicais. Não se deve esquecer que o uso destes tinha sido proscrito, exceto o órgão, na música religiosa do catolicismo. A Igreja Protestante incentivou e motivou de maneira veemente a aprendizagem, a interpretação e a construção de novos instrumentos. Desta forma, os instrumentos foram modernizados e adquiriram as formas que persistem até hoje. E também foram criados outros novos instrumentos. Esse impulso na interpretação dos instrumentos musicais produziu como feliz resultado a conformação de orquestras paroquiais de música, que alcançaram nível técnico sobressalente, sendo capazes de dar vida às famosas cantatas, oratórios e paixões de Bach e Handel, por exemplo.
A música de Lutero permaneceu popular depois de sua morte. Enquanto o catolicismo continuou a se concentrar em representações visuais da Divindade, na pintura e na escultura, o protestantismo abraçou a música. E, posteriormente, compositores protestantes criaram versões para os seus hinos. Johann Sebastian Bach estendeu o hino Castelo Forte até convertê-lo em uma magnífica cantata de 30 minutos, enquanto Félix Mendelssohn o agregou à sua Sinfonia No.5, conhecida apropriadamente como “Sinfonia da Reforma”.
PARA RECORDAR
A Reforma Protestante quebrou muitos paradigmas e estabeleceu novos princípios musicais que orientam a vida artística das igrejas até hoje:
– A música e o canto são um meio para a conversão da alma a Deus e um poderoso agente missionário.
– A música não é um privilégio de poucos escolhidos. Na medida do possível ela deve ser interpretada por toda a congregação, sem distinção de sexo, idade ou posição social.
– A música deve ser interpretada em um idioma e linguagem de fácil compreensão para todas as pessoas.
– A participação do coro e da orquestra tem como objetivo fundamental guiar e incentivar a participação de todos os fiéis no ato da adoração.
– Os hinos de louvor congregacional devem ser de melodia simples e de elaboração harmônica e rítmica não sofisticada, de modo a permitir a correta compreensão da mensagem por todos os ouvintes.
– Os instrumentos musicais são bem-vindos no ato de adoração. É incentivada a formação de orquestras e diversos grupos para acompanhar a música de adoração.
– São realizados esforços para a educação musical de crianças e jovens na igreja. Nascem as escolas paroquiais de música.
– A música e a arte protestante e arte são direcionadas principalmente para a mente humana, buscando impressioná-la com a verdade. Não se apelam aos sentidos ou à fantasia, não são feitas tentativas para fascinar.
– Na música protestante não há lugar para a exibição de virtuosismo. O canto é dirigido a Deus como uma expressão da comunidade.
OS PRINCÍPIOS DA MÚSICA PROTESTANTE NO ESPÍRITO DE PROFECIA
Para finalizar, consideramos importante recordar algumas afirmações da Inspiração que confirmam e restabelecem os princípios musicais da Reforma e os projetam como conselhos e orientações plenamente aplicáveis a nossas igrejas hoje:
“A música é um dos meios mais eficazes para impressionar o coração com as verdades espirituais. Quantas vezes à alma oprimida duramente e pronta a desesperar, vêm à memória algumas das palavras de Deus — as de um estribilho, há muito esquecido, de um hino da infância — e as tentações perdem o seu poder, a vida assume nova significação e novo propósito, e o ânimo e a alegria se comunicam a outras almas!
“Nunca se deve perder de vista o valor do canto como meio de educação. Que haja cântico no lar, de hinos que sejam suaves e puros, e haverá menos palavras de censura e mais de animação, esperança e alegria. Haja canto na escola, e os alunos serão levados para mais perto de Deus, dos professores e uns dos outros.”4
“A música faz parte do culto de Deus, nas cortes celestiais, e devemos esforçar-nos, em nossos cânticos de louvor, por nos aproximar tanto quanto possível da harmonia dos coros celestiais. (…) Os que fazem do canto uma parte do culto divino, devem escolher hinos com música apropriada para a ocasião, não notas de funeral, porém melodias alegres e todavia solenes. (…) Como parte do culto, o canto é um ato de adoração tanto como a oração. Efetivamente, muitos hinos são orações. Se a criança é ensinada a compreender isto, ela pensará mais no sentido das palavras que canta, e se tornará mais susceptível à sua influência.”6
“Nas reuniões realizadas, escolham-se alguns para tomar parte no serviço de canto. E seja este acompanhado de instrumentos de música habilmente tocados. Não nos devemos opor ao uso da música instrumental em nossa obra. Esta parte do serviço deve ser cuidadosamente dirigida; pois é o louvor de Deus em canto. O canto não deve ser sempre feito por uns poucos. O mais frequentemente possível, una-se toda a congregação.”7
“Ao guiar-nos nosso Redentor ao limiar do Infinito, resplandecente com a glória de Deus, podemos aprender o assunto dos louvores e ações de graças do coro celestial em redor do trono; e despertando-se o eco do cântico dos anjos em nossos lares terrestres, os corações serão levados para mais perto dos cantores celestiais. A comunhão do Céu começa na Terra. Aqui aprendemos a nota tônica de seu louvor.”8
1 O Grande conflito, p. 120
2 Ibidem, p. 133
3 Paul Nettl. De Lutero a Bach, p. 7
4 Educação, p. 168
5 Ibidem
6 Evangelismo, p. 507
7 Educação, p. 168