Discutir a questão do pecado em nossa sociedade causa desconforto. Primeiro por que ao compreendermos a verdadeira natureza do pecado somos colocados diante de um espelho que revela quem somos de verdade. E isso não é agradável. Sem segundo lugar, o mundo atual aprendeu a apequenar o pecado. Desde que eu não esteja fazendo nenhum mal a alguém, que não seja eu mesmo, qual o problema? A psicologia freudiana apregoa que a culpa é um sentimento negativo que deve ser negado, pois ela é resultante da quebra das convenções sociais que nos são impostas. Portanto é uma forma de nos aprisionar e sermos o que não queremos ser. Em terceiro lugar, pecado é um conceito fora de moda. A cultura pós-moderna ensina o relativismo moral, onde o que é mau para você pode ser bom para mim. Tudo é uma questão de gosto e preferência. Em nossos dias não existe absoluto moral, uma padrão universal. Por último, por que falar de uma coisa tão desagradável se podemos pregar sobre união, paz, harmonia, não-violência, tolerância e amor, que afinal, é do que o mundo precisa.
Tudo isso pode ser respondido com apenas um ponto: nossa compreensão do conceito de pecado está intimamente ligada ao nosso entendimento sobre a salvação. Quanto mais entendermos o que o pecado é e de como ele nos afeta, mais claro nos era o que Deus fez por nós em Cristo.
DEFINIÇÃO BÍBLICA
Qual é a definição bíblica de pecado? Alguém pode citar de forma apressada a definição que encontramos em 1Jo 3.4: “Pecado é a transgressão da lei”. Mas esta passagem nos diz muito sobre a ação de pecar, mas pouco da sua essência, ou seja, da verdadeira natureza do pecado. O conceito de pecado é tão amplo que a Palavra de Deus utiliza várias palavras para se referir a ele.
No Antigo Testamento é riquíssima a variedade de palavras que descrevem a natureza do pecado. Hara’ tem o sentido de errar o alvo (Jz 20.16), ou seja, falhar em alcançar um alvo importante. Pode significar também rebelião, ou o desvio de um caminho reto. Essa palavra é usada quase quatrocentas vezes no Antigo Testamento e corresponde ao termo grego Hamartia. ‘Avon é iniquidade, culpa e significa errar o caminho. Revela que o pecado nasce da má intenção do coração (Jó 15.5). Os verbos hebraicos shagag e shaga significam errar, extraviar-se, desencaminhar-se, vaguear, pecar. Eles referem-se ao pecado cometido por ignorância (Nm 15.27).
Os verbos hebraicos sur e sug significam desviar, afastar, abandonar, apostatar, revoltar-se. O substantivo sara significa deserção e apostais (Jz 2.17). Os verbos natasch e azab também significam abandonar. Estas palavras enfatizam que o pecado leva a luta da alma contra Deus em aberta revolta, além de indicar que ele afasta o homem de seu Criador pondo-o como seu inimigo (Dt 29.25; 32.15). O verbo rasha’ significa ser ímpio, culpado, pecaminoso e descreve o caráter formado pela prática do pecado. Pode ser usada com o sentido de trair. A ênfase recai sobre o pecado como a revolta da nossa vontade contra vontade de Deus (Sl 1.1).[i]
Em grego existem diversas palavras também para descrever o pecado. Um termo grego muito usado para se referir ao pecado no Novo Testamento é anomos. Ela é formada por duas palavras gregas: o sufixo de negação “a”, mais a palavra “nomos” que significa lei. Portanto anomos (que deu origem a nossa palavra portuguesa anomalia) refere-se aquilo que é contrário à lei, ou como algumas versões da Bíblia em português traduzem corretamente, transgressão da lei (1Jo 3.4). Hamartia, que nos referimos acima, significa errar o alvo. Isso indica que pecar é não alcançar o padrão estabelecido por Deus. Parabasis tem o sentido de desvio de uma direção original e certa. Essa palavra revela que o pecado quebra o pacto gracioso de Deus com o homem. Paraptoma era usado para refere-se a alguém que se errou o caminho, faltou com a verdade, falhou no dever, desviado para um lado ou outro, enganado. A palavra enfatiza o fato de que o pecado leva ao abandono total da verdade.[ii]
Poderíamos estender esta lista de palavras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, ainda mais, porém elas já são suficientes para indicar que o pecado é mais do que fazer algo errado. Ele afeta a nossa natureza e as nossas ações, ou seja, quem somos. Para Ellen G. White “o pecado é um intruso, por cuja presença nenhuma razão se pode dar. É misterioso, inexplicável; desculpá-lo corresponde a defendê-lo. Se para ele se pudesse encontrar desculpa, ou mostrar-se causa para a sua existência, deixaria de ser pecado. [...] é o efeito de um princípio em conflito com a grande lei do amor.”[iii] Mais do que atos errados, o pecado é um “princípio” que age no coração do homem contaminando tudo de bom que ele porventura poderia fazer.
Jesus deixou isso muito claro durante o sermão da montanha. Ao contrário dos fariseus que ensinavam que o ato deveria ser consumado para ser definido como pecado, ao longo do discurso Jesus deixou claro que a intenção constitui pode entrar neste critério. Para Jesus sentimentos de ódio e o desejo lascivo são tão pecado como se fossem praticados os atos que eles instigam (veja Mt 5.27-32). Existem cristãos que ensinam que o passarinho pode passar por nossa cabeça mas que não podemos deixar que eles criem ninho. Será que eles querem dizer que se o pensamento não é alimentado ele não constitui pecado? À luz do ensino de Jesus o voo do passarinho já é pecado.
Voltando a citação de Ellen G. White, ela disse que a origem do pecado é um mistério. Se o céu é perfeito como poderia alguém sugerir que alguma coisa estava errada? Ou o problema estava no céu ou em Lúcifer. Se Deus era um tirano como o inimigo alegava então o pecado era uma revolta justa contra a tirania e tinha razão de existir. Se Satanás estava mentido e provocando uma rebelião sem motivo então o pecado não tem razão de existir. Não podemos dar uma razão para a sua existência. Quem tinha razão? É por isso que o apóstolo Paulo chama a ação do mal de “mistério da iniquidade” (2Ts 2.7). O profeta Ezequiel, ao descrever a origem de Satanás, diz: “Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado até que se achou iniquidade em ti.” (Ez 28.15). O mal não foi criado, ele apenas surgiu.
Para entendermos o conceito bíblico de pecado precisamos examinar os diversos ângulos e aspectos pelo qual ele é descrito na Palavra de Deus.
ELE NOS SEPARA DE DEUS
Qualquer pecado cometido por nós é feito contra Deus. O Salmista orou: “Pequei contra ti [Senhor], contra ti somente, e fiz o que é mau perante os teus olhos, de maneira que será tido por justo no teu falar e puro no teu julgar” (Sl 51.4). Quando Jesus ofereceu perdão para o paralítico, os fariseus fizeram uma afirmação correta: “Quem pode perdoar pecados, senão um, que é Deus”, (Mc 2.7). Se cometo um erro contra um irmão A, por mais que queira o irmão B não poderá me oferecer perdão, por aquela ofensa. Apenas o irmão ofendido pode me oferecer perdão. Como todas as nossas faltas são cometidas contra Deus, só Ele pode nos perdoar. O raciocínio está correto, os fariseus erraram em não reconhecer que Jesus era deus entre os homens e tinha essa autoridade para perdoar.
Diante de um Deus puro, nossos erros nos separam dEle: “Mas as vossas iniquidades fazer separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para vos não ouça” (Is 59.2). Os fariseus tinham razão: “Deus não atende a pecadores.’ (Jo 9.31).
Diante de um deus santo nem os anjos são puros diante dEle: “Eis que Deus não confia nem nos seus santos [falando dos anjos], nem os céus são puros aos seus olhos, quanto menos o homem que é abominável e corrupto, que bebe a iniquidade como água!” (Jó 15.16; ver também Jó 25.5, 6). Por isso, o profeta Isaías afirmou que “todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapo da imundícia; todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades, como um vento, nos arrebatam.” (Is 64.6). O profeta não está dizendo que as nossas injustiças são trapo da imundícia, mas que as nossas justiça são. Ellen G. White comenta sobre a desesperadora condição humana:
“Os cultos, as orações, o louvor, a penitente confissão do pecado, sobem dos crentes fiéis, qual incenso ao santuário celestial, mas passando através dos corruptos canais da humanidade, ficam tão maculados que, a menos que sejam purificados por sangue, jamais podem ser de valor perante Deus. Não ascendem em imaculada pureza, e a menos que o Intercessor, que está à mão direita de Deus, apresente e purifique tudo por Sua justiça, não será aceitável a Deus.”[iv]
Todas as vezes que os homens de deus do passado tinham um pequeno vislumbre da santidade de Deus eles se declaravam pecadores. Se acharmos que somos justos diante de Deus, por algum esforço próprio ou forte determinação estamos revelando que não sabemos nada sobre santidade divina. Quanto mais perto estivermos de Cristo mais conscientes seremos a nossa invalidez: “Quanto mais perto chegares de Jesus, mais faltoso parecerás a teus próprios olhos; porque tua visão será mais clara e tuas imperfeições serão vistas em amplo e distinto contraste com Sua natureza perfeita.”[v]
O PECADO MARCA A ALMA
Se tirarmos um prego da madeira mesmo assim ficará a sua marca. Da mesma maneira o pecado produz sinais no nosso coração. O profeta Jeremias escreveu sobre o pecado de Judá: “O pecado de Judá está escrito com um ponteiro de ferro e com diamante pontiagudo, gravado na tábua do seu coração e nas pontas dos seus altares.” Jr 17.1. Além de marcar a alma do pecador, ele tem consequências que vão afetar a nossa vida na eternidade. Ellen G. White comenta: “Agora poder ser que vos possais arrepender. Mas mesmo que se escreva o perdão ao lado de vosso nome, sofrereis terrível perda, pois as cicatrizes que fizerdes em vossa alma permanecerão.”[vi]
PECADOS POR OMISSÃO
Talvez alguém ache que se não fizer absolutamente nada, evitará o pecado. Esse pensamento levou muitos no passado se isolarem do mundo e alguns chegaram ao extremo de ficar em monastérios em absoluto silêncio pelo resto da vida pana não pecar. Contudo, a simples omissão já constitui pecado: “Portanto, aquele que deve fazer o bem e não o faz nisso está pecando.” (Tg 4.17). Jesus ensinou que mesmo que não nós posicionemos à seu favor ou contra já estamos tomando uma posição: “Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha.” Mt 12.30. Isso é inescapável, se não formos ativos no bem, a simples inatividade é pecado.
O PECADO SEDUZ
Outra vertente assustadora do mal é que ele exerce um poder sedutor e enganador sobre a alma humana. Tiago, que enunciou o pecado e todas as suas mazelas de forma clara, afirma que “cada um é tentado pela sua própria cobiça, quanto está o atrai e seduz.” (Tg 1.14). Não podemos culpar a ninguém quando pecamos. Alguns crentes imaginam que se ficassem longe da influência de Satanás não pecariam mais. Esquecem que o maior mal não está fora de nós, mas em nós. E que pecamos por que somos pecadores e não somos pecadores por que pecamos. É da nossa natureza ser mal e iníquo.
A SOLUÇÃO DIVINA
Se parássemos nosso estudo neste ponto só nos restaria o desespero e a morte eterna. A compreensão da natureza do pecado revela que não condições do homem fazer qualquer coisa para a sua salvação. Não temos como pagar os pecados passados e nem como deixar de cometer pecados no futuro. Contudo, encontramos a solução para nossa situação de desamparo em Cristo. O apóstolo Paulo escreveu, para nosso conforto: “Aquele que não conhece pecado [Jesus Cristo], Ele [Deus Pai] o fez pecado por nós para que nEle [Jesus Cristo], fôssemos feitos justiça de Deus.” (2Co 5.21). Jesus Cristo não pecou. Sua natureza recuava diante do mal, mas Ele morreu. Por conta de algum pecado que tivesse cometido? Não, mas por causa dos nossos pecados. Ele tomou sobe si os nossos pecados para que recebêssemos a Sua justiça. Agora, a vida que Ele merecia nos é oferecida gratuitamente, basta que aceitemos a oferta do amor divino. Ele morreu para que possamos viver. Graças a Deus por este maravilhoso dom!
[i] Referências:
CRABTREE, A. R. Teologia bíblica do Velho Testamento, p. 147, 148.
[ii] BROWN, Colin (Ed.). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, vol. 1, p. 480-494.
[iii] O Grande conflito, p. 493.
[iv] Mensagens escolhidas, volume 1, p.344.
[v] Como encontrar paz interior, p. 67.
[vi] Testemunhos para ministros, p. 447.