A doutrina da Trindade é um dogma de Constantino e foi estabelecida no Concílio de Nicéia?
Esse tipo de acusação aparece em toda literatura anti-trinitariana para tentar provar que a doutrina tem origem pagã. Como associamos o nome de Constantino com um cristianismo apóstata é fácil perceber a intenção de ligá-lo a doutrina da Trindade. Contudo, para que essa acusação seja verdadeira seria necessário que nos dois séculos anteriores a realização do Concílio de Nicéia os autores cristãos não ensinassem essa doutrina e sim o que Ário, que negava essa doutrina, ensinava. Um rápido exame da literatura patrística vai revelar qual era o ensino ortodoxo da igreja.
Clemente de Roma foi líder da igreja da capital do Império no tempo em que João escreveu o livro do Apocalipse e o seu Evangelho. Portanto ele conviveu com vários apóstolos. Cerca do ano 96, Clemente escreveu uma carta para a igreja de Corinto que continuava agitada por grave divisão interna. Nesta longa carta, ele aconselha a igreja:
“Aceitando nosso conselho não tereis de que vos arrepender, pois, vive Deus, vivem o Senhor Jesus cristo e o Espírito Santo, vivem e fé e a esperança dos eleitos.”[i]
Inácio de Antioquia foi bispo da igreja em Antioquia. Em seus escritos há indicações de que ele conheceu pessoalmente o apóstolo João e Paulo. Em sua carta aos Efésios ele escreveu:
“Lembrando-vos de que sois pedras do templo do Pai, elevados para o alto pelo guindaste de Jesus Cristo, que é sua cruz, com o Espírito Santo como corda.”[ii]
Justino Mártir nasceu em uma família pagã, converteu-se pela leitura do Novo Testamento. Estudante de filosofia, depois de sua conversão fundou uma escola em Roma. Escreveu duas obras ao imperador Antonino Pio que datam de 150 dC, visando defender o cristianismo de falsas acusações feitas pelos seus opositores. Na obra Da I Apologia ele explica:
“Terminadas as orações, damo-nos mutuamente o ósculo da paz. Apresenta-se então a quem preside aos irmãos pão e um vaso de água e vinho, e ele tomando-os dá louvores e glória ao Pai do universo pelo nome de seu Filho e pelo Espírito Santo, e pronuncia uma longa ação de graças em razão dos dons que dele nos vêm. [...]
“Por tudo o que comemos bendizemos sempre ao Autor de todas as coisas, por meio de seu Filho Jesus cristo e pelo Espírito Santo.”[iii]
Atenágoras, que morreu em 180 dC, era filósofo em Atenas e escreveu a obra “Súplica pelos cristãos”, onde defende o cristianismo em tom respeitoso a Marco Aurélio e seu filho Cômodo. Nessa obra ele faz uma extensa explicação do que os cristãos pensam sobre Deus e nega a acusação deles serem ateus:
“Nós não somos ateus. Reconhecemos a existência de um único Deus, incriado, eterno, invisível, impassível, incompreensível, que não poder ser circunscrito num lugar, que só poder ser atingido pelo espírito e pela razão, que está envolto de luz, de beleza, de espírito e forças inenarráveis, por quem o universo foi criado e ordenado, por quem o mesmo é conservado, mediante o Verbo que está com ele. [...]
“Reconhecemos também, com efeito, um Filho de Deus. [...] O Filho de Deus é Verbo do Pai em ideia e em poder. Tudo foi feito por meio dele, sendo um o Pai e o Filho. O Filho está no Pai e o Pai no Filho, por unidade e poder do espírito e assim o Filho de Deus é espírito e verbo de Deus. [...] O Espírito profético está também de acordo com a razão [...]
“Na verdade, o Espírito Santo, que age através dos que fala em profecias é, dizemos, uma emanação de Deus, de quem brota e em quem reentra como um raio de sol.
“Como, portanto não se admira alguém de ouvir chamar ateus os que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e o Espírito Santo, ensinando ser único seu poder e sua distinção ser na ordem?”[iv]
Por ultimo podemos mencionar São Teófilo de Antioquia, que viveu na mesma época de Atenágoras. Nasceu na Mesopotâmia e converteu-se ao cristianismo já adulto. Na sua obra A respeito da cosmogonia bíblica ele faz um paralelo em os três primeiros dias da criação e a divindade:
“Da mesma forma, os três dias que precedem o aparecimento dos luzeiros, são tipos da Trindade: de Deus, de seu Verbo, e de sua Sabedoria.”[v]
O autor da coletânea de onde estamos retirando essas citações faz uma nota explicativa sobre a palavra Trindade: “Aparece aqui, pela primeira vez na literatura cristã, a palavra Trindade (“Trias”) aplicada a Deus. O fato, porem, de Teófilo usá-la como um termo corrente, sem necessidade de explicação, faz pensar que não era seu autor.”[vi]
É claro que não estamos usando os pais da igreja como regra de fé, mas apenas estamos citando-os como testemunhas da crença dos cristãos no tempo anterior ao Concílio de Nicéia. Existem muitos outros escritores cristãos dessa época que defendem a crença na tri-unidade de Deus. A negação dessa doutrina era considerada pela igreja como heresia. Ário não defendia a fé ortodoxa da igreja, mas sim, estava tentando introduzir na igreja o pensamento gnóstico, misturado com a filosofia neoplatônica.
Comentando sobre o teria ocorrido em Nicéia, Rodrigo P. Silva comenta:
“Ao contrário do que muitos pensam, o próprio imperador não tinha interesse algum em ‘promulgar’ uma doutrina trinitária pra a Igreja. Se este fosse o seu intento, ele não precisaria convocar um concílio. Bastava repetir o ato de quatro anos antes, quando promulgou o decreto dominical, e assinar um edito ordenando a todos que adorassem ao Deus triúno.”[vii]
É bom lembrar que o centro da discussão em Nicéia não era a Trindade, mas sim a natureza de Cristo em relação ao Pai. O credo Niceno não diz nada sobre o Espírito Santo ser uma pessoa ou não.
As saudações nas cartas paulinas não são trinitarianas.
Ricardo Nicotra comenta que “todas as saudações das cartas de Paulo citam apenas Deus, o Pai, e o seu Filho Jesus Cristo. Nunca citam o Espírito Santo.”[viii] Ele então cita a introdução de todas as cartas de Paulo para confirmar a sua tese. Se Paulo crê na doutrina da Trindade, por que Paulo não faz uso de uma fórmula trinitariana na abertura de suas cartas?
O Tratado de Teologia Adventista explica o motivo da preferência paulina pela saudação binitariana:
“É importante ter em conta que nosso conhecimento de Deus surgiu do fato de que Deus habitou na forma imanente com seu povo. A presença histórica do Filho entre nós tornou-se possível e necessária a revelação de Deus o Pai como uma pessoa que deve ser distinta de Deus o Filho como pessoa. Através de todo o NT esta verdade s é expressa na íntegra de diferentes formas; uma delas é a fórmula binitária comum: ‘Deus o Pai e o Senhor Jesus Cristo’. [...]
“Podemos perguntar-nos por que se usa a fórmula binitária em vez de trintiariana, pois os escritores do NT eram conscientes da existência da terceira pessoa da Trindade. Para começar, entre a fórmula binitária a trinitariana há uma diferença quantitativa antes que qualitativa. Em outras palavras, a novidade da concepção bíblica de Deus ocorre quando se diz que a pluralidade e a unidade coexistem no ser divino. Uma vez que se descobriu essa coexistência, a diferença entre um conceito binitário e um trinitaráro se reduz simplesmente a exclusão ou inclusão de uma terceira pessoa divina como constitutiva da pluralidade pessoal do Deus único. Além disso, a fórmula binitária não nega seja a existência ou a atividade da terceira pessoa divina, senão enfatiza o marco específico que se necessita para captar o significado da encarnação. Em outras palavras, o NT trata primeiro de todo com a compreensão da auto-revelação de Deus em Jesus de Nazaré.
“A fórmula binitária é a pressuposição necessária para a encarnação. Posto que a principal tarefa que compreende os escritores do NT é a clarificação da encarnação de Deus em Cristo e suas implicações para a totalidade da teologia, não suepreenda encontrar que em todo o NT se use a fórmula binitariana. Por outro lado, o concepto e a fórmula trinitariana aparecem com pressuposições necessárias para captar devidamente o significado da atividade de Cristo posterior a ressurreição através de seu representante, o Espírito Santo. A preocupação concreta e prática dos escritores do NT podem explicar por que a fórmula trinitariana se utiliza menos frequentemente. Uma revelação plena do ser de Deus foi acessível somente depois que Jesus Cristo mesmo introduziu a pessoa divina do Espírito Santo.”[ix]
A ênfase do apóstolo não a pluralidade dentro da divindade, mas da revelação de Deus por Cristo e sua relação com a encarnação e salvação do homem. Isso não quer dizer que não haja saudações epistolares trinitarianas em o NT. Nicotra não cita de propósito a saudação da primeira carta de Pedro, por que ela não se encaixa na sua argumentação: “Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos de Deus, peregrinos dispersos no Ponto, na Galácia, na Capadócia, na província da Ásia e na Bitínia, escolhidos de acordo com o pré-conhecimento de Deus Pai, pela obra santificadora do Espírito, para a obediência a Jesus Cristo e a aspersão do seu sangue.” Essa introdução explicita o papel de cada um dos membros dentro da divindade e sua relação com o plano da salvação: Fomos escolhidos por Deus Pai, o Espírito Santo faz a obra de nos santificar e Jesus ofereceu a sua vida na cruz pelos nossos pecados. Não é uma questão apenas de citar nomes juntos (como argumentam os antitrinitarianos) para provar a personalidade de cada um deles, mas entender que cada um deles tem um papel ou função distinta nestas passagens. Paulo ensina a mesma distribuição de funções no plano da salvação quando escreveu a Tito: “Mas quando, da parte de Deus, nosso Salvador, se manifestaram a bondade e o amor pelos homens, não por causa de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua misericórdia, Ele nos salvou pelo lavar regenerador e renovador do Espírito Santo, que ele derramou sobre nós generosamente, por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador.” Tanto para Paulo como para Pedro a obra de transformar o caráter do homem é do Espírito Santo. É a obra divina atribuída a uma pessoa divina.
O livro do Apocalipse também começa com uma saudação trinitariana: “João às sete igrejas da província da Ásia: A vocês graça e paz da parte daquele que é, que era e que há de vir, dos sete espírito que estão diante do seu trono, e de Jesus Cristo, que é a testemunha fiel, o primogênito e dentre os mortos e o soberano dos reis da terra.” (cap. 1.4, 5).
2Co 13.13 (14) não é uma forte evidência à favor da doutrina da trindade?
Ricardo Nicotra tenta desvalorizar o peso da evidência da verdade trinitariana nesta passagem afirmando:
“A doutrina da trindade ensina que Deus é o primeiro, também chamado de primeira pessoa da trindade”, Jesus Cristo é a segunda pessoa, e finalmente, o Espírito Santo é a terceira pessoa da trindade. Este é o ensino clássico trinitariano. Mas parece que esta sequência de primeira, segunda e terceira pessoa não estava muito clara para o apóstolo Paulo. Perceba que Jesus Cristo é o primeiro a ser mencionado em II Coríntios 13.13. Ora, se a doutrina da trindade que hoje é ensinada fosse um consenso entre os apóstolos, Paulo certamente obedeceria a ordem das pessoas, no entanto não o fez.”[x]
O raciocínio do autor parece lógico, mas parte de uma premissa falsa, portanto a conclusão vai ser falsa. Não existe tal coisa, como primeiro precisamos nos referir ao Pai, depois ao Filho e por último ao Espírito Santo. Isso faz sentido na fórmula batismal mas em outras ocorrências onde aparecem as três pessoas da divindade não há essa preocupação em citá-los em determinada ordem. Nenhum credo ou confissão de fé afirma isso, também. Portanto, o argumento não é válido.
Em continuação o opositor afirma que Paulo não está dizendo que temos “comunhão com o Espírito Santo”, mas sim “do Espírito Santo”. O que Paulo estaria querendo dizer com isso? A NBLH traduz essa passagem de forma mais clara: “Que a graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a presença do Espírito Santo estejam com todos vocês!”
Além disso, a comunhão com o Pai e o Filho (1Jo 1.3) não nega a possibilidade de termos comunhão com o Espírito Santo (Fp 2.1).
[i] Primeira carta de São Clemente aos Coríntios, citado por Cirilo Folch Gomes em Antologia dos santos Padres, p. 21, 22.