Série Espírito Santo - História do debate no movimento adventista
- Em: Teologia
- Por: Alexandre de Araújo
Os pioneiros adventistas tinham uma posição anti-trinitariana. Dos três fundadores do Movimento adventista, dois (José Bates e Tiago White) vinha da Conexão Cristã, uma igreja que não aceita a doutrina da Trindade por a considerarem de origem pagã e não-bíblica. A outra fundadora do adventismo, Ellen G. White, apesar de sua formação metodista, vai tomar uma posição clara a favor dessa doutrina apenas a partir da década de 1880. Por isso não é de estranhar o discurso contra a plena divindade de Cristo feita pelos pioneiros.
Tiago White (1821-1881) de início, “rejeitou totalmente o que descrevia como ‘o velho despropósito trinitariano’, que favorecia a idéia de que ‘Jesus Cristo é verdadeiramente o Deus Eterno’. Todavia, após 1853, ele afirmou sua crença na divindade de Cristo.”[1]
Vinte e três anos depois, Tiago White escreveu que os adventistas “crêem na divindade de Cristo da mesma forma que os trinitarianos.”[2]
Enquanto a posição de Tiago White revelava certo equilíbrio e amadurecimento, o mesmo não se pode dizer de Uriah Smith (1832-1903). Suas obras e artigos exerceram forte influência sobre a teologia adventista incipiente. Seu livro mais importante foi Daniel and the Revelation (Daniel e Apocalipse). Ao comentar Ap 3.14, Uriah Smith conclui que “o Filho veio à existência de uma maneira diferente.”[3] Mais adiante, na mesma obra, ele explica melhor a sua cristologia:
“As Escrituras em parte alguma falam de Cristo como de um ser criado, mas claramente afirmam que Ele foi gerado pelo Pai [...] Mas conquanto, como Filho gerado, não possua com o Pai uma co-eternidade de existência pretérita, o começo da sua existência é anterior a toda a obra da criação, em razão à qual Ele foi criador juntamente com Deus. [...] Ele elevou-o a posições em que é próprio ser adorado, e além disso ordenou que se lhe prestasse adoração, o que não teria sido necessário se Ele fosse igual ao Pai em eternidade de existência. O próprio Cristo declara que ‘como o Pai tem a vida em Si mesmo, assim deu ao Filho ter a vida em Si mesmo’, Jo 5.26. O Pai ‘exaltou-o soberanamente, e deu-lhe um nome que é sobre todo o nome’, Fp 2.9. E o próprio Pai diz: ‘E todos os anjos de Deus O adore’, Hb 1.6. Estes testemunhos mostram que Cristo é agora objeto de adoração igualmente com o Pai; mas não provam que tenha com Ele uma eternidade de existência passada.”[4]
Por fim, em 1898, Smith escreveu em seu último livro, Looking unto Jesus, uma estranha observação sobre Jesus: “Com o Filho, a evolução da Deidade, como divindade, cessou.”[5] Ele cria que Cristo não fora criado mas sim derivado de Deus e que o Espírito Santo era o poder de Deus.
O primeiro adventista a apresentar uma cristologia mais sistemática foi E. J. Waggoner (1855-1916). Nos debates teológicos que ocorreram na Conferência Geral de 1888 sobre justificação pela fé ele exerceu, juntamente com Alonzo T. Jones (1850-1923), papel proeminente. Apesar de não termos os registros do teor dos debates, podemos ter uma idéia do que foi discutido ao longo do evento no livreto Christ our righteousness (Cristo nossa justiça).[6] Apesar de Waggonner defender a crença na plena divindade de Cristo, nessa obra ele expõe uma posição semi-ariana com respeito a Sua origem:
“As Escrituras declaram que Cristo é o ‘unigênito Filho de Deus’. Ele é gerado, não criado. Quando Ele foi gerado não nos compete indagar, nem nossas mentes poderiam assimilá-lo se nos fosse indicado. [...] Houve um tempo em que Cristo procedeu e veio de Deus, do seio do Pai (Jo 8.42; 1.18), mas esse tempo está tão recuado nos dias da eternidade que para a compreensão finita é praticamente sem início.”[7]
Essa posição contrasta com os ensinos adventistas modernos. Em 1980 a Igreja Adventista votou em Assembléia da Conferência Geral, realizada em Dallas, EUA, as suas 27 crenças fundamentais. Entre elas estava a doutrina da Trindade. No Movimento de Reforma essa questão foi definida há muito mais tempo. Em sua primeira Assembléia da Conferência Geral realizada em 1925 foi votado os seus Princípios de fé. Os três primeiros pontos doutrinários tratam sobre o Pai, o Filho e o Espírito Santo o que deixava claro que o novo movimento era, desde o seu nascimento, um grupo trinitariano.
Quando lemos essas afirmações e a comparamos com a posição atual do adventismo, as questões naturais que surgem são:
Por que houve essa mudança?
Quando Ela aconteceu?
Ela foi apoiada ou condenada por Ellen G. White?
E, por último, essa mudança não foi apostasia da verdade?
Nesta seção vamos tentar responder a última questão, enquanto no capítulo 6 vamos responder as três primeiras.
Mudança de paradigma
Grupos separatistas apresentam esses fatos e levantam a questão: se os pioneiros eram contra a doutrina da trindade e o movimento adventista atual é a favor, quem tem a razão? Os fundadores do adventismo aprenderam a verdade pelo estudo das Escrituras e rejeitaram esse ensino. Será que eles estavam enganados? Se erraram nesse ponto não estariam errados em outros? Se eles estavam certos neste aspecto então o movimento adventista atual não apostatou ao ensinar e defender a Trindade?
Para muitos dissidentes, toda a Verdade Presente foi dada nos anos iniciais do adventismo, entre 1844 e 1863 (ano da organização da Igreja). Os seus fundadores não tinham essa visão estática da verdade. Eles não criam que Deus já havia revelado todas as verdades que tinha para o Seu povo e que não havia mais o que aprender da Sua Palavra. Sobre isso, Ellen White escreveu:
“Sempre que o povo de Deus estiver crescendo em graça, obterá constantemente compreensão mais clara de Sua Palavra. Há de distinguir mais luz e beleza em suas sagradas verdades. Isto se tem verificado na história da igreja em todos os séculos, e assim continuará até ao fim. Mas à medida que a verdadeira vida espiritual declina, tem sido sempre a tendência cessar o crente de avançar no conhecimento da verdade.
“Os homens ficam satisfeitos com a luz já recebida da Palavra de Deus, e desistem de qualquer posterior estudo das Escrituras. Tornam-se conservadores, e procuram evitar novo exame.
“O fato de não haver controvérsias ou agitações entre o povo de Deus, não deveria ser olhado como prova conclusiva de que eles estão mantendo com firmeza a sã doutrina. Há razão para temer que não estejam discernindo claramente entre a verdade e o erro. Quando não surgem novas questões em resultado de análise das Escrituras, quando não aparecem divergências de opinião que instiguem os homens a examinar a Bíblia por si mesmos, para se certificarem de que possuem a verdade, haverá muitos agora, como antigamente, que se apegarão às tradições, cultuando nem sabem o quê.” OE 297, 298
Dessa passagem podemos aprender alguns princípios. Em primeiro lugar, aprofundar o nosso conhecimento da verdade é sinal de vitalidade espiritual da igreja. Em segundo lugar, enquanto estivermos desse lado da eternidade nunca poderemos dizer que não temos mais o que aprender da Palavra de Deus. Em terceiro lugar, quando a Igreja se acomoda com as verdades conquistas é sinal de declínio espiritual. Por isso, deveríamos nos preocupar quando não houvesse debates e mudanças de paradigmas pelo estudo da Bíblia e não quando tudo continua estático. Nem sempre mudança significa apostasia. Por último, o apego as velhas tradições ensinadas pela Igreja, sem apoio das Escrituras, leva a Igreja a um estado de conservadorismo desvitalizado.
Ellen White ensinava que Deus tem mais verdades para revelar ao Seu povo:
“Um espírito de farisaísmo tem influenciado o povo que diz crer na verdade para estes últimos dias. Estão satisfeitos consigo mesmos. Dizem: ‘Temos a verdade. Não há mais luz pra o povo de Deus’. Mas não estamos seguros quando tomamos a posição de que não aceitaremos nada mais além daquilo que temos estabelecido como a verdade. [...] Alguns têm me perguntado se eu acho que haverá mais luz para o povo de Deus. Nossas mentes têm se tornado tão estreitas que não compreendemos que o Senhor tem uma poderosa obra a realizar por nós. Crescente luz deve brilhar em nós.” OP 24.
Além disso, a posição de que não podemos mudar de opinião é contrária ao espírito protestante. Os católicos acreditam que a antiguidade torna legítima uma doutrina e não podemos endossar essa posição. Para a pena inspirada a Igreja pode ter se equivocado em alguma interpretação no passado e não é vergonhoso para ela mudar de idéia.
“Não há desculpas para ninguém assumir a posição de que não há mais verdades a serem reveladas e de que todas as nossas visões da Bíblia não têm qualquer erro. O fato de certas doutrinas terem sido consideradas como a verdade por muitos anos pelo nosso povo não é uma prova de que nossas idéias sejam infalíveis. A idade não transforma o erro em verdade e ela pode ser reexaminada. Nenhuma verdadeira doutrina terá algo a perder pela cuidadosa investigação.” OP 24.
Isso significa que podemos colocar na berlinda todas as nossas doutrinas? Não, assim como na constituição de qualquer país, há no movimento adventista as chamadas clausulas pétreas, que não podem mudar. Esses pontos, que conhecemos como marcos antigos, criam a identidade do adventismo. Eles dizem em que aspectos os adventistas divergem dos outros grupos cristãos. Quais seriam esses pontos? A irmã White os define de forma clara:
“O passar do tempo em 1844 foi um período de grandes acontecimentos, expondo ao nosso admirado olhar a purificação do santuário que ocorre no Céu, e tendo clara relação com o povo de Deus na Terra, e com as mensagens do primeiro, do segundo e do terceiro anjo, desfraldando o estandarte em que havia a inscrição: ‘Os mandamentos de Deus e a fé de Jesus.’ Um dos marcos desta mensagem era o templo de Deus, visto no Céu por Seu povo que ama a verdade, e a arca, que contém a lei de Deus. A luz do sábado do quarto mandamento lançava os seus fortes raios no caminho dos transgressores da lei de Deus. A não-imortalidade dos ímpios é um marco antigo. Não consigo lembrar-me de alguma outra coisa que possa ser colocado na categoria dos velhos marcos.” EF 44, 45.
Os “marcos antigos” do adventismo seriam:
- A purificação do santuário celestial;
- A tríplice mensagem angélica;
- Os mandamentos de Deus;
- A fé em Jesus;
- O santuário celestial;
- O sábado e a
- Não-imortalidade dos ímpios.
Essas são as “clausulas pétreas” do adventismo. São os seus dogmas. Mexer nessas doutrinas, para os adventistas seria apostasia da verdade, a perca da sua identidade. Outras doutrinas e interpretações não estão debaixo da definição de Verdade Presente e, portanto, podem ser revistas à luz das Escrituras. Se descobrirmos que aquilo que uma vez ensinamos ou cremos não está em conformidade com o “Assim diz o Senhor”, estando fora dos marcos antigos, não seria apostasia abandoná-los. Isso aconteceu em diversos aspectos ao longo da história do adventismo, inclusive na questão da Trindade.
Que exemplos podem ser citados de doutrinas ou ensinos que foram mudados depois da organização da Igreja em 1863 e que não significou apostasia:
A compreensão da doutrina da justificação pela fé, na Conferência Geral de 1888.
O uso do dízimo como forma de manter o ministério evangélico. A igreja adotou esse sistema na década de 1870 por causa de uma série de artigos escritas por D. Canright e publicados na Reviw and Herald.
A luz sobre a Reforma de Saúde foi enviada à Igreja quinze dias depois que a ela foi organizada em 1863.
Outra questão que devemos manter em mente é que os pioneiros não são o padrão da verdade. Crer assim torna a tradição algo com a mesma autoridade que as Escrituras. Essa posição não é protestante, mas católica. A serva do Senhor nos adverte:
“Mas Deus terá sobre a Terra um povo que mantenha a Bíblia, e a Bíblia só, como norma de todas as doutrinas e base de todas as reformas. As opiniões de homens ilustrados, as deduções da ciência, os credos ou decisões dos concílios eclesiásticos, tão numerosos e discordantes como são as igrejas que representam, a voz da maioria - nenhuma destas coisas, nem todas em conjunto, deveriam considerar-se como prova em favor ou contra qualquer ponto de fé religiosa. Antes de aceitar qualquer doutrina ou preceito, devemos pedir em seu apoio um claro – ‘Assim diz o Senhor’.” GC 595.
Quando ela fala em “homens ilustres” e decisões de “concílios eclesiásticos” não quer apenas condenar o apego que há a tradição em outros grupos religiosos. Ela entendia que o próprio movimento adventista poderia cair nessa cilada espiritual.
“Mesmo os adventistas do sétimo dia correm o perigo de fechar os olhos à verdade conforme ela é em Jesus, porque contradiz algo que eles supunham ser a verdade, mas que o Espírito Santo ensina não ser.” TM 70, 71.
[1] Citado ZURCHER, Jean. Tocado pelos nossos sentimentos, p. 19.
[2] Citado por ZURCHER, Ibidem.
[3] SMITH, Uriah. As profecias do Apocalipse, p. 53.
[4] Idem, p. 82. Essas duas últimas afirmações foram tiradas da edição publicada no Brasil pela Edições Vida Plena.
[5] Tocado pelos nossos sentimentos, p. 17.
[6] Essa obra foi publicada pela primeira vez em português em 1976 com o nome de Libertos para sempre.
[7] WAGGONER, E. J. Cristo e Sua justiça, p. 19.