

Uma igreja de certa localidade da América do Norte estava para receber a visita de um novo ministro do evangelho. Como fosse o costume de todos os ministros que aí vinham hospedar-se em casa dos irmãos W., também desta vez esses nobres irmãos haviam tomado as disposições necessárias a fim de preparar ao novo ministro uma recepção condigna. A senhora W. achava-se muito atarefada na cozinha, no preparo de alguns acepipes culinários, e o Sr. W. passeava na varanda de sua casa, quando surgiu no patamar da escada um viajante mal trajado, informando-se acerca da distância que havia até a próxima cidade. "Tem ainda que caminhar cinco quilômetros," foi a resposta do dono da casa. Fazia um frio intenso e o viajante suplicou que se lhe concedesse aquecer-se um pouco junto ao fogão antes de prosseguir viagem.
O Sr. W. anuiu, com alguma relutância, e ambos se dirigiram a cozinha. A mulher, notando o estranho, que trajava uma roupa já bastante usada, tendo à cabeça um chapéu que não denotava menos uso, e que calçava umas botas toscas e pesadas, lançou-lhe uns olhares pouco afáveis. Depois de alguma hesitação ofereceu-lhe uma cadeira junto ao forno, dentro do qual chiavam uns excelentes bolos destinados à recepção do novo ministro, que no dia seguinte devia pregar numa capela distante dali cerca de dois quilômetros.
Depois de se haver devidamente aquecido, o hóspede se dispunha a continuar a viagem; o tempo estava, porém, pouco convidativo e as iguarias ao fogão lhe haviam por tal forma aguçado o apetite, que não pôde resisti à tentação de pedir alguma coisa que comer, antes de se pôr a caminho. A Sra. W. não acolheu lá com muita satisfação esse pedido, todavia, depois de haver consultado o marido, serviu-lhe pão e um pouco de carne fria sobre uma mesa velha que havia a um canto da cozinha.
Entretanto a noite caía, e os donos da casa significaram ao seu hóspede que era necessário partir, pois que havia ainda cinco quilômetros até a cidade.
Finalmente a refeição estava terminada e o desconhecido, agradecendo cordialmente a hospitalidade recebida, dirigiu-se à porta a fim de retirar-se. Estava, porém, já muito escuro e a julgar pelas nuvens, que fugiam velozes, havia tempestade em vista.
- O senhor disse que há ainda cinco quilômetros até a cidade?
- Sim, foi o que eu disse, respondeu o Sr. W., e lhe disse quando aqui chegou; o senhor, como homem sensato, devia ter tomado nota disto, tratando de continuar a sua viagem antes de fechar a noite.
- Mas sentia frio e fome e talvez houvesse desmaiado no caminho, disse o desconhecido.
O tom em que proferiu estas palavras comoveu um pouco o fazendeiro.
- O senhor me aqueceu e deu-me alimento, continuou o estranho, e sou-lhe muito grato por isto; talvez se digne ainda um favor a um estrangeiro, que poderia errar o caminho nesta escuridão e vir a perecer de frio?
A maneira e o tom em que foram ditas estas palavras tornaram impossível ao fazendeiro responder-lhe pela negativa.
- Entre e assente-se, disse ele ao estranho; vou falar com minha mulher a ver o que ela diz a isto.
O Sr. W. entrou na sala de jantar, onde estava já posta a mesa para a ceia, coberta de uma toalha alvíssima, sobre a qual se ostentava um lindo serviço de porcelana e que só era usado nas grandes ocasiões.
- Ainda não foi embora o estranho? perguntou a Sra. W., que tinha ouvido a voz do mesmo quando voltou da porta.
- Não, e o que dizes a isto: ele pede para pernoitar em nossa casa?
- Não, nisto não podemos consentir, e ainda mais pessoa dessa laia; onde iríamos metê-lo?
- Naturalmente não no quarto melhor; mas o ministro parece não vir hoje.
- Com efeito, assim parece.
- E não podemos mandar embora o desconhecido; não é homem forte, e tem ainda cinco quilômetros até à cidade, continuou Sr. W.
- É demais: deveria ter ido enquanto ainda era dia e não esperar até que sobreviesse a noite.
- Nada adianta estarmos discutindo sobre este ponto, Joana, não podemos enxotá-lo daqui.
- Mas que havemos de fazer com ele?
- Pelo que parece não é homem de más intenções; far-lhe-emos uma cama no chão.
A estas palavras o Sr. W voltou à cozinha, onde o desconhecido tinha tomado assento junto ao fogão, e comunicou-lhe que podia pernoitar. O desconhecido agradeceu em poucas palavras e tudo ficou em silêncio.
Logo depois a Sra. W., que havia perdido toda a esperança de que o novo ministro ainda viesse, pôs a ceia na mesa. Consistia esta de frango assado, café e bolos. Depois de estar tudo preparado, os donos de casa tomaram conselho a fim de resolver se o seu hóspede deveria ser convidado ou não. É verdade que se lhe havia dado pão e carne a fartar, mas agora que queria pernoitar, parecia pouco hospitaleiro assentarem-se eles à mesa sem também o convidarem. Assim, fazendo da necessidade uma virtude, foi o desconhecido cordialmente convidado para a ceia, convite que ele não declinou. O Sr. W. disse uma breve oração, invocando a bênção de Deus, e em seguida deu-se começo ao repasto.
À mesa havia também um interessante menino de seis anos, elegantemente vestido, o qual deveria fazer uma saudação especial ao novo ministro. Conversava ininterruptamente e os pais se orgulhavam dele, mesmo diante de seu modesto hóspede, que particularmente observava o pequeno, sem, porém, falar muito.
- Ora vamos, Carlito! disse o Sr. W depois de terminada a ceia; podes recitar-nos aquele belo hino que mamãe te ensinou?
Carlito levantou-se e recitou corretamente duas ou três estrofes de um conhecido hino religioso.
- Agora dize-nos de cor os mandamento, disse-lhe a mãe, satisfeita da capacidade do filho. Carlito recitou os mandamentos, sem nenhum embaraço.
- Quantos mandamentos são? perguntou o pai.
O menino hesitou um instante, depois, olhando para o desconhecido que estava sentado próximo, perguntou ingênuamente:
- Quantos são?
O homem refletiu um momento, e então perguntou, como que hesitando:
- Não são onze?
- Onze?! exclamou a Sra. W., com sincero espanto.
- Onze?! repetiu o marido mais em tom de censura do que de admiração.
- É possível que o senhor não saiba quantos são os mandamentos? Quantos são, Carlito? Diga-me lá, tu o sabes perfeitamente.
- Dez! respondeu o menino.
- Muito bem, meu filho disse o Sr. W., olhando para ele com um sorriso de satisfação.
- Muito bem! Não há em toda esta redondeza um menino de sua idade que não poderia dizer-lhe que os mandamentos são dez. Já leu alguma vez a Bíblia? disse o Sr. W., voltado para o estanho.
- Em menino li-a muitas vezes. Mas estava firmemente persuadido de que fossem onze. Acaso o senhor não se engana, pensando que são dez?
A Sra. W. bateu as mãos em sinal de espanto e exclamou:
- Como é possível uma tal ignorância da Bíblia!
O Sr. W. não disse nada, mas levantando-se, foi a um canto da sala, onde havia uma Bíblia, trouxe-a e pô-la aberta diante do seu hóspede. - Aqui, disse-lhe, apontando com o dedo os Dez Mandamentos, examine o senhor mesmo. Então afastou-se um pouco, olhando por cima dos ombros do desconhecido. - Está vendo?
- É assim, pois não, respondeu o estranho, contudo me parece que são onze.
- Mas então o senhor não vê aqui que são dez? perguntou o Sr. W., com visível impaciência.
- Sim perfeitamente!
- Pois bem, que quer mais?! Não crê na Bíblia?
- Oh, sim, eu creio na Bíblia, contudo me parece que foi acrescentado um alhures.
Isto foi demais para o Sr. e a Sra. W. Uma tal ignorância nas coisas da religião lhes parecia imperdoável. Seguiu-se uma comprida lição em que o hóspede foi censurado, exortado e ameaçado com a indignação divina. Ao cabo da mesma perguntou o hóspede humildemente se podia ter a Bíblia por uma ou duas horas a fim de lê-la, antes de deitar-se.
Este pedido foi satisfeito com maior prazer do que qualquer dos anteriores. Logo depois da ceia o homem foi conduzido ao aposento destinado aos hóspedes de menos cerimônia, levando consigo a Bíblia. Antes de o Sr. W. despedir-se dele, considerou seu dever falar-lhe ainda um pouco acerca de coisas espirituais, o que fez com a maior gravidade possível durante uns dez ou quinze minutos. Não havia entretanto que as suas palavras fizessem alguma impressão sobre ele, e abandonou o hóspede lamentando a sua dureza de coração e ignorância.
Na manhã seguinte o homem estranho tomou respeitosamente parte no culto doméstico. Depois da refeição agradeceu ao fazendeiro e à sua esposa a hospitalidade que lhe haviam dispensado e continuou a viagem.
Soaram dez horas e o novo ministro ainda não havia chegado.
Os irmãos W. dirigiram-se, pois, em carro, ao local da reunião, convencidos de que o haviam de encontrar lá. Ficaram, porém, desenganados. Estava reunida já uma grande multidão de gente fora e dentro da igreja, mas do ministro nem sequer sinal.
- Onde está o Sr. N.? perguntaram uma dezena de vozes, cercando o fazendeiro.
- Não veio, alguma coisa retardou a sua chegada, mas ainda o espero. Contava com certeza encontrá-lo já aqui.
O dia estava frio e um tanto desagradável, e o sr. W. propôs que se entrasse na igreja para aguardar aí a chegada do ministro, pondo-se ele a espreitar da janela. Não tardou que a sala da congregação estivesse cheia. O fazendeiro, que costumava olhar sempre para a porta quando essa se abria, ficou não pouco espantado de ver entrar de repente o seu hóspede do dia antecedente. Este se adiantou vagarosamente, espreitando para todos os lados como se procurasse um assento desocupado. Finalmente caminhou até ao púlpito. No mesmo instante o Sr. W. estava ao seu lado e pegava-lhe do braço.
- O senhor não deve assentar-se aqui; venha, que eu lhe indicarei um assento, disse, num tom excitado.
- Muito obrigado, respondeu o homem, com voz abafada; estou muito bem aqui; e continuou imóvel na sua cadeira. O Sr. W., compreendendo a inutilidade de seus esforços, foi ter com um dos oficiais da igreja para este ajudá-lo a tirar o homem de detrás do púlpito. Antes, porém, que chegasse a realizar o seu intento, o desconhecido levantou-se e abriu um livro de hinos. Sua voz penetrou até à medula do Sr. W. quando, com ar distinto e em tom impressivo, anunciou o hino, que versava sobre estas palavras:
"Não vos esqueçais de fazer bem, e de repartir dos vossos bens com os outros, porque com tais oferendas é que Deus se dá por obrigado."
A congregação levantou-se, depois de o desconhecido haver lido todo o hino e repetido os dois primeiros versos. O irmão W. era quem costumava começar o hino, o que ele também fez agora, mais muito devagar, Notando logo na segunda palavra o erro que cometera, começou de novo, mas desta vez num tempo muito apressado. Outro irmão veio em seu socorro, começando a cantar o hino no compasso. Depois do canto a congregação ajoelhou-se, e o ministro - ninguém mais tinha dúvida de que ele o era - orou com virtude e eloqüência. Em seguida leu um capítulo da Bíblia e houve então um silêncio profundo pela ansiedade em que todos estavam de ouvir o texto que o ministro ia ler agora. Ter-se-ia podido ouvir cair um alfinete, tal foi esse silêncio. De repente ressoou a voz sonora e vibrante do ministro: "Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei a vós." O irmão W. a princípio, nem quisera escutar, e finalmente deixou-se cair sobre a cadeira. Lá estava o undécimo mandamento. O sermão foi profundo e penetrante; o ministro nada disse que de alguma maneira pudesse ofender aos irmãos cuja hospitalidade havia gozado; disse, porém, muitas coisas que lhes penetraram no coração e lhes fizeram sentir que não haviam praticado para com aquele estranho a caridade que ele podia ter esperado de discípulos de Cristo.
Finalmente o culto havia terminado. O Sr. W. não sabia o que devia fazer; nunca em sua vida se sentira tão aniquilado. Agora o ministro descia do púlpito; o Sr. W. porém, não foi ao seu encontro como era o seu costume; e como poderia fazê-lo? Outros o cercaram, mas ele hesitava, conservando-se afastado.
- Onde está o irmão W.? Ouviu ele alguém perguntar; era a voz do ministro.
- Aqui esta ele, disseram alguns, abrindo o caminho para lhe dar passagem.
O ministro dirigiu-se para ele, tomou-lhe a mão e disse: - Bom dia, irmão W., estimo muito vê-lo aqui. E onde está a irmã W.?
A irmã W. foi conduzida para a frente, e o ministro deu-lhe um cordial apêrto de mão, tendo nos lábios um amável sorriso.- Creio que poderei hospedar-me hoje em sua casa, disse ele, como se isto fora já coisa decidida. Antes que os irmãos, embaraçados, lhe pudessem responder, alguém perguntou:
- Por que chegou o senhor tão tarde? Já era esperado aqui ontem à tarde; e onde está o irmão R.?
- O irmão R. está doente, respondeu o ministro, e eu vim só. Distante daqui uns oito quilômetros o meu cavalo cansou, e tive que fazer o resto do caminho a pé. Fazia, porém, um frio tão intenso e estava tão cansado, que me vi obrigado a recorrer à hospitalidade de um fazendeiro que não mora muito distante daqui, o qual teve a bondade de acolher-me em sua casa. Pensei que havia ainda cinco quilômetros até este local, mas, segundo me parece, estava já mais próximo do termo de minha viagem do que eu supunha. Esta explicação satisfez a todos; a congregação logo se dissolveu e o ministro dirigiu-se com os irmãos W. para a casa deles.