“E havendo aberto o quinto selo, vi debaixo do altar as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram” (Apocalipse 6:9).
Esta figura é popularmente considerada como uma prova de peso da doutrina do estado desincorporado e consciente dos mortos. Pretende-se que aqui se trate de almas vistas por João num estado desincorporado, consciente, e com conhecimento do que se estava passando, pois que clamavam vingança para os seus perseguidores. Esta interpretação é inadmissível, por diversos motivos: 1. °) — A opinião popular coloca estas almas no Céu; mas o altar de sacrifício sobre que foram mortas, e debaixo do qual foram vistas, não pode encontrar-se ali. O único altar que sabemos existir ali é o altar de incenso; mas não seria correto representar, como estando debaixo do altar, vítimas recentemente mortas, visto que esse altar nunca foi consagrado a tal uso. 2. °) — Repugnaria a todas as nossas ideias acerca do estado celestial, representar almas no Céu acaçapadas debaixo de um altar. 3. °) — Poderemos supor que a ideia de vingança reine tão soberanamente nas mentes das almas no Céu, que, apesar da alegria e glória desse inefável estado, se encontrem insatisfeitas e constrangidas até que se tome vingança dos seus inimigos? Não teriam antes motivo de se alegrar por a perseguição ter levantado a sua mão contra eles, e os ter assim levado mais depressa à presença do seu Redentor, junto de Quem há plenitude de alegria e prazeres sem fim? Mas, além disso, a opinião popular que coloca estas almas no Céu, coloca ao mesmo tempo os ímpios no lago de fogo, onde se contorcem em indizível tormento, e em plena visão da hoste celeste. Isto, pretende-se, é apoiado pela parábola do rico e de Lázaro, que se encontra em Lucas 16. Ora as almas que aparecem sob o quinto selo são as que foram mortas sob o selo precedente, dezenas de anos, e muitas delas centenas de anos antes. Sem dúvida alguma os seus perseguidores já tinham todos passado do estado de ação, e, segundo a aludida opinião, encontravam-se todos sofrendo os tormentos do inferno que estava diante de seus olhos.
Como se não estivessem, porém, satisfeitas com isto, clamam a Deus como se Ele estivesse retardando a vingança dos seus assassinos. Que maior vingança queriam elas? Ou, se seus perseguidores estivessem ainda na Terra, elas deviam saber que, quando muito, dentro de poucos anos, se uniriam à vasta multidão que diariamente é arremessada para o mundo de sofrimento através das trevas da morte. Mas, mesmo nesta suposição, não aparece em melhor luz a sua amabilidade. Uma coisa, pelo menos, é evidente: A teoria popular acerca da condição dos mortos, justos e ímpios, não pode ser correta; ou então não é correta a interpretação geralmente dada a esta passagem; porque excluem-se mutuamente.
Mas insiste-se em que estas almas devem ser conscientes; pois que clamam a Deus. Este argumento seria de peso, se não houvesse uma figura de retórica chamada personificação. Mas, havendo, vem a propósito, sob certas condições, atribuir vida, ação e inteligência a objetos inanimados. Assim, diz-se que o sangue de Abel clamava a Deus desde a terra. (Gênesis 4:9, 10). A pedra clamava da parede e a trave lhe respondia do madeiramento. (Habacuque 2:11). O jornal dos trabalhadores, retido por fraude, clamou, e os clamores entraram nos ouvidos do Senhor dos exércitos. (Tiago 5:4). Assim podiam clamar as almas mencionadas no nosso texto, não se provando por isso que elas sejam conscientes.
O absurdo da opinião popular sobre este versículo é tão evidente que Alberto Barnes faz a seguinte concessão: “Não devemos supor que isto sucedeu literalmente, e que João atualmente viu as almas dos mártires debaixo do altar, porque toda a representação é simbólica; nem devemos supor que os injuriados e maltratados estejam agora no Céu a pedir vingança para aqueles que os maltrataram, ou que os remidos no Céu continuem a orar com referência às coisas da Terra; mas pode muito bem concluir-se daqui que haverá uma lembrança dos sofrimentos dos perseguidos, injuriados e oprimidos, tão real como se fosse feita ali semelhante oração; e que o opressor tem tanto a temer da divina vingança como se aqueles a quem injuriou clamassem no Céu ao Deus que ouve as orações e que toma vingança”. — Notes on Revelation, 6.
“Em passagens como esta, o leitor pode ser desorientado pela definição popular da palavra alma. Por essa definição, é levado a supor que este texto fala de uma imaterial, invisível e imortal essência no homem, que voa para a sua cobiçada liberdade, pela morte do corpo mortal, sem obstáculo e prisão. Nenhum exemplo do emprego desta palavra no original hebraico ou grego apoia semelhante definição. A maior parte das vezes significa vida, e não raras vezes é traduzida por pessoa. Aplica-se tanto aos mortos como aos vivos, como pode ver-se em Gênesis 2:7, onde a palavra vivente não necessitaria de ter sido expressa se a vida fosse um atributo inseparável da alma; e em Números 19:13, onde a Concordância Hebraica apresenta ‘alma morta’. Além disso, estas almas pedem que seja vingado o seu sangue — substância que se supõe não ser possuída pela alma imaterial, tal como é popularmente compreendida [...]
‘As vestes brancas’. Estas foram dadas como uma resposta parcial ao seu clamor, ‘Até quando, ó verdadeiro e santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue?’ Que sucedeu? — Tinham descido à sepultura do modo mais ignominioso. Suas vidas tinham sido deformadas, suas reputações denegridas, difamados os seus nomes, torcidos seus motivos, e suas sepulturas cobertas de vergonha e opróbrio, como se encerrassem as desonrosas cinzas das pessoas mais vis e desprezíveis. Assim a igreja de Roma, que então moldava o sentimento das principais nações da Terra, não poupava esforços para tornar as suas vítimas um objeto de aversão para toda a carne.
“Mas a Reforma começou a sua obra. Começou a ver-se que a igreja era corrupta, e que aqueles contra quem fulminara a sua ira eram os bons, os puros e os verdadeiros. Fez-se luz a este respeito em várias nações. Viu-se então que tinham sofrido, não, por serem vis e criminosos, mas ‘por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram’. Então seus louvores foram cantados, admiradas suas virtudes, sua fortaleza aplaudida, seus nomes honrados, e respeitadas suas memórias. Foram assim dadas vestes brancas a cada um deles”, Uriah Smith, Profecias do Apocalipse, págs. 91-95.